Fonte: Le Printemps Giuseppe Arcimboldo. 1563. Open Art Imagens. Domínio Público.
As modulações dos sentidos a partir da sua formação biológica, social, histórica e cultural
“Durante longos períodos da história, o modo das percepções sensoriais humanas se modificou como todo o modo de existência da humanidade. A maneira pela qual a percepção humana é organizada, o meio pela qual ela é realizada, é determinada não somente pela natureza, mas também por suas circunstâncias históricas”.
Walter Benjamin (Tradução livre, 1969).
Os estudos dos sentidos humanos levam a ciência ao patamar multidisciplinar, que vão muito além da biologia ou estudos comportamentais. Os cinco sentidos, visão, audição, tato (somatossensorial), olfato e paladar não são apenas fenômenos físicos e químicos em contato com o corpo, mas envolvem aspectos sociais, históricos e culturais nas modulações das suas intensidades para percepção do mundo.
Do ponto de vista conceitual, sensações ou percepções não são sinônimos. As sensações são a conversão dos estímulos que entram em contato com os órgãos dos sentidos em sinais elétricos, fenômeno chamado de transdução de sinais. Esses sinais atingem o sistema nervoso até que determinadas partes do cérebro recebam sinapses para o reconhecimento de informações específicas. Já as percepções requerem experimentações, organização e entendimento das informações recebidas pelo cérebro, e insere significados a cada estímulo sensorial, que podem ser interpretados e memorizados conforme o ambiente e condições em que se sobrevive.
Ao analisar o conceito biológico relacionado à fisiologia das sensações, verificam-se diferenças cruciais em relação aos tipos de estímulos, que podem ser estritamente físicos, como no caso da visão e audição, químicos, como o paladar e olfato ou “físico-químicos”, como o tato, sentido também chamado de somatossensorial. Esses estímulos podem se modificar constantemente e tem ação direta ao que se vê, se escuta, se come, se cheira, se sente.
A visão, também caracterizada por Diderot (1713-1784) como “o sentido mais superficial”, envolve a detecção da luz, composta por ondas eletromagnéticas presentes no ambiente. Sua conversão em impulsos elétricos na retina ocorre a partir de reações que envolvem uma alteração física da rodopsina, uma proteína fotoreceptora. A partir da ativação do nervo óptico, os impulsos são enviados ao cérebro, que irá interpretar as cores e formas em uma região chamada córtex visual.
A audição, “o sentido mais orgulhoso”, diferente do visual, necessita de ondas sonoras que viajam através do canal auditivo até causar uma vibração no tímpano e criar pressões constantes na cóclea, que contém células especializadas em transduzir os estímulos sonoros em elétricos. O nervo auditivo leva, então, as informações para o córtex auditivo. A intensidade dos sons, ou seja, o volume, irá determinar a magnitude das vibrações e a quantidade de células que os irão receber.
O paladar, “o mais inconstante” e olfato, “o mais voluptuoso” dependem da interação de substâncias químicas com receptores específicos presentes nos seus órgãos sensoriais. Os receptores para paladar recebem estímulos na língua, palato e outros órgãos não sensoriais, como estômago e intestino. Até o momento, foram identificados receptores gustativos para substâncias doces, salgadas, amargas, ácidas/azedas e umami. O umami foi reconhecido cientificamente como um gosto básico apenas no ano 2000, mas as pesquisas com o aminoácido glutamato e nucleotídeos como a inosina e guanosina-5’-monofosfato se iniciaram no início do século 20, quando o pesquisador da Universidade Imperial de Tóquio, Kikunae Ikeda, iniciou a identificação dessas substância em alimentos e também a produção industrial do aditivo alimentar glutamato monossódico. O umami pode ser encontrado naturalmente em alimentos de origem animal e também em tomates, ervilhas, milhos, cogumelos, aspargos. Outros estudos, ainda em investigação, tentam identificar a presença de receptores na língua e palato para peptídeos, gordura, metais e outras substâncias.
Para o olfato, a recepção ocorre através de receptores presentes no bulbo olfativo, que recebem os estímulos provocados por substâncias voláteis tanto pela olfação ortonasal (nariz) como retronasal (boca). Já foram identificadas, aproximadamente, 10.000 substâncias que o sentido do olfato é capaz de reconhecer. No entanto, apenas algumas possuem real importância odorífera para determinados indivíduos, que podem identificá-las a partir de experimentações e desenvolvimento do léxico mental para sua percepção.
O tato, “o mais profundo”, e também chamado de sensação somatossensorial, envolve a estimulação de receptores presentes em todos os órgãos. Estudos sensoriais tendem a focar mais os estímulos que atingem a pele e deixam as sensibilidades aos outros órgãos para áreas médicas. Esses estímulos podem ser físicos, como variações de temperatura, toque e pressão, ou químicos, como o contato de substâncias que provocam sensações de dor ou mesmo modificações na temperatura corporal, como mentol (frio) e capsaicina (aquecimento e dor).
Tendo em vista que as percepções não dependem apenas de estímulos e do comportamento celular, verifica-se que a confluência entre outras áreas de conhecimento é necessária para estudos mais complexos sobre as necessidades e comportamentos humanos.
Para os pontos de vista sociais, histórico e culturais, instituiu-se estudos sobre a antropologia dos sentidos, que mostram como as sociedades formam modelos sensoriais e adotam significados e valores num consenso particular a partir de suas próprias visões de mundo.
Algumas civilizações ainda mantêm modelos e valores que pouco sofreram modulações. Um exemplo explicito e interessante sobre essas condições humanas pode ser visto no documentário “Happy People – A year in the Taiga” (Herzog & Vasyukov, 2010), que conta a história de moradores no centro da Sibéria, uma região agrícola praticamente isolada das regiões modernas. Os moradores quase não modificaram seus costumes e tradições. O mesmo costume de caças de animais ocorre no verão. A modernidade só chegou com os motores, que agilizaram os processos das caças e as vestimentas, que garantem a sobrevivência no gelo. As carnes são curadas e armazenadas para serem consumidas no inverno. A luz elétrica também auxiliou este inóspito lugar do mundo a viver a vida como lhe foi dada, em uma demonstração clara da etinografia dos sentidos.
De acordo com Classen (1997), os sentidos, de fato, são regulados pela sociedade como um aspecto de existência corporal, desde o comer até o envelhecer. Os códigos sociais determinam o que constitui o comportamento sensorial aceitável a qualquer tempo, por qualquer indivíduo, e indicam quais os significados das experiências sensoriais.
Provavelmente, há e haverá desafios para determinados modelos de sociedades, pessoas e grupos que diferem em certos valores sensoriais, ainda que este modelo possa fornecer a percepção básica de um paradigma a ser seguido ou resistido.
Referências
CLASSEN, C. “Foundations for an Anthropology of the Senses.” International Social Sciences Journal 153: 401–12, 1997
COX, R. Antropology of senses. In: CALLAN, H: The International Encyclopedia of Anthropology. New Jersey, US: JohnWiley & Sons, Ltd. Published, 2018.
HALL, J.E; HALL, M.E. Guyton and Hall Textbook of Medical Physiology. 14 ed. Amsterdam, NL: Elsevier, 2000.
HERZOG, V; VASYUKOV, D. Happy People – A year in the Taiga. Music Box Film & Studio Babelberg, 2010.