Grande parte dos profissionais que atuam na área de ciências sensoriais é mulher, e elas foram fundamentais no desenvolvimento desse campo. Uma delas em especial, a Rose Marie Pangborn é considerada a pioneira da área e este post traz a história dela escrita por Hildegard Heymann (também uma referência e autora do livro “Sensory Evaluation of Food: Principles and Practices”) no artigo “A personal history of sensory science” publicado no periódico “Food, Culture & Society”.
Hildegard Heymann tornou-se aluna da Pangborn de maneira bem inusitada, somente porque não gostava de lavar louça, acredita? A colega de quarto dela no mestrado queria fazer a disciplina da Pangborn, a famosa FST 107 da Universidade de Davis e a chamou para fazer junto. Ela a princípio não queria, e nem precisava dos créditos pra concluir o mestrado, mas combinou com a amiga que faria se ela lavasse toda a louça da casa pelas próximas 10 semanas. Resultado? Ela cursou e descobriu que era o que queria fazer pelo resto da vida dela.
Mas o que fez de Pangborn e da disciplina FST 107 conhecidas mundialmente?
A ciência sensorial é multidisciplinar, envolvendo estatística, psicologia, ciência e tecnologia de alimentos, entre outras áreas. E até então, cada uma dessas frentes de conhecimento vinha se desenvolvendo separadamente.
A psicofísica, por exemplo, que é um ramo da psicologia que estuda a relação entre os estímulos físicos e a resposta humana a esses estímulos, teve seus primeiros trablhos em 1800 na Alemanha. Foi dessa ciência que veio o conceito de limiar diferencial, estudado nos anos 70 pela Pangborn em colaboração com outros pesquisadores.
Já a psicometria, outra área da psicologia, que busca construir e aplicar instrumentos para mensuração de variáveis psicológicas aliada a métodos estatísticos, também vinha evoluindo. Thurstone, considerado o pai da psicometria, desenvolveu nos anos 20 teorias que são a base da análise sensorial moderna. Depois veio o Stevens, que em um de seus papers nos anos 40 escreveu que medida é atribuir números a objetos ou eventos de acordo com algumas regras, e ele formulou as regras para escalas nominais, ordinais, de intervalo e de proporção, conceitos que usamos até hoje.
Uma outra área que vinha se desenvolvendo também era a dos testes discriminativos. O teste triangular surgiu independentemente em 2 lugares diferentes, na destilaria Seagrams (EUA) em 1941 e na cervejaria Carlsberg (Dinamarca) em 1943. O teste duo-trio também surgiu na destilaria Seagrams. Esses 2 testes foram a base de uma nova forma de trabalhar com alimentos e bebidas, obtendo dados objetivos vindo das percepções humanas pra formular produtos.
David Peryam, que foi o criador dos testes triangular e duo-trio na destilaria Seagrams serviu a marinha durante a 2ª guerra mundial e quando voltou assumiu a chefia da Seção de Aceitação de Alimentos do Instituto de Alimentos e Recipientes do Intendente das Forças Armadas em Chicago em 1949, e lá liderou o estudo que desenvolveu a escala hedônica pra ser usada com o pessoal do exército como ferramenta pra melhorar a qualidade dos alimentos enviados a eles no campo de batalha. As primeiras publicações da Pangborn nos anos 50 usaram a escala hedônica pra determinar a aceitação de frutas enlatadas.
Nos anos 50 começaram a se desenvolver também os métodos descritivos, que ao contrário do desenvolvimento dos outros campos, que vinham sendo liderados pela indústria e academia, os métodos descritivos se desenvolveram principalmente nas empresas de consultoria. Uma das principais personagens aqui foi Jean Caul, que junto com seus colegas criou o Perfil de Sabor na empresa de consultoria em que trabalhava.
E aqui vale uma pausa pra contar sobre o doutorado dela. Ela tentou entrar para um doutorado em química na Ohio State University mas teve que ouvir que mulheres não se tornam boas químicas. Ela persistiu e conseguiu entrar no doutorado no Departamento de Química Fisiológica, Toxicologia e Matéria Médica na mesma universidade, onde, em 1942, foi a primeira mulher a receber o título de doutora nesse departamento.
Uma das primeiras empresas a começar a aplicar o Perfil de Sabor foi a General Foods, sob a liderança da Elaine Skinner. Baseados no Perfil de Sabor, Stone e Sidel criaram nos anos 70 a Análise Descritiva Quantitativa, famosa ADQ, que foi a base pra eles abrirem a empresa Tragon, em 1974. Gail Civille trabalhou na General Foods com a Elaine e depois disso saiu pra criar sua propria empresa de consultoria, a Sensory Spectrum, para trabalhar com o método que ela havia desenvolvido. A Pangborn também trabalhou com os métodos descritivos, sendo uma das primeiras a usar no contexto acadêmico. Em estudo publicado em 1976, ela estudou o perfil sensorial de bebidas e gelatinas com sabor de frutas adoçadas com sacarose, aspartame e ciclamato.
Até aqui eu já te contei muita história e até falei de alguns trabalhos da Rose Marie Pangborn, mas agora é que você vai entender o grande papel dessa mulher no desenvolvimento da ciência sensorial.
Até aquele momento, todos os pedacinhos do que chamamos hoje de ciência sensorial estavam se desenvolvendo: psicofísica, psicometria, testes discriminativos, testes com consumidores, análise descritiva, análise estatística. E apesar de estarem sendo desenvolvidos no mesmo momento histórico, elas não estavam todas juntas e organizadas em uma ciência, cada assunto era um campo de pesquisa separado. E aí que entra a Pangborn: ela juntou tudo isso e criou a disciplina FST 107 na universidade de Davis na Califórnia, dando origem à ciência sensorial da forma como a praticamos e ensinamos até os dias de hoje.
A Pangborn nasceu em 1932 nos EUA, foi contratada pela Universidade de Davis na Califórnia no departamento de ciência e tecnologia de alimentos como pesquisadora e potencial doutoranda em 1955. Em 1963 se tornou professora, em 1968 professora associada e em 1972 professora titular. E uma curiosidade, ela nunca completou o doutorado, que era seu objetivo inicial na Universidade de Davis, mas recebeu o título de doutora honoris causa da universidade de Helsinki na Finlândia em 1984
A disciplina FST 107 – Análise sensorial de alimentos, foi criada em 1960 e os responsáveis eram a Pangborn, Maynard Amerine e Edward Roessler. Mas nos primeiros anos foi ensinada somente por Pangborn. Em 1965 os 3 professores publicaram o livro “Principles os Sensory Evaluation of Food”, considerado a bílbia da sensorial por pelo menos 35 anos seguintes ao seu lançamento. O primeiro assistente de classe foi Herbert Stone, que depois também se tornou uma das referências na área.
A Pangborn treinou muitos estudantes na Universidade de Davis e criou o campo de pesquisa da ciência sensorial. Muitos dos alunos dela entre os anos 60 e 80 vieram depois a se tornar cientistas sensoriais e seus pensamentos e maneira de ensinar se espalharam pelo mundo, tendo inclusive brasileira que viajaram à California para cursar sua disciplina.
Pangborn faleceu em 1990, deixando um legado importantíssimo e hoje o maior congresso da área sensorial, que acontece a cada 2 anos, e teve a 1ª edição em 1992, leva seu nome em homenagem e reconhecimento a sua importância.
Playlist da UC Davis com as aulas da disciplina FST107 ministradas por Howard Schtz, Vernon Singleton, Maynard Amerine, Rose Marie Pangborn e Joel L. Sidel
Referência: Hildegarde Heymann (2019) A personal history of sensory science, Food, Culture & Society, 22:2, 203-223, DOI: 10.1080/15528014.2019.1573043